Fenômeno que tem se tornado mais frequente nos últimos anos, o ressurgimento da antiga cidade de Rubinéia nas águas do rio Paraná desperta curiosidade, resgata histórias, emociona e ao mesmo tempo gera preocupação. A seca dos últimos meses fez com que o rio recuasse pelo menos 200 metros, deixando à mostra as ruínas da cidade inundada nos anos 70 devido à construção da usina Hidrelétrica de Ilha Solteira.
Em 2014, o reaparecimento da antiga cidade também foi registrado, despertando a curiosidade das novas gerações, e fazendo emergir a nostalgia nos mais antigos. Veja vídeo de Darlei Teixeira, no fim do texto, sobre o ressurgimento da antiga estação ferroviária. Morador se emociona ao gravar as imagens dos pilares do prédio há décadas devorado pelas águas.
Já nos anos 80 a seca castigava o noroeste paulista e a velha Rubinéia ressurgia ao lado da nova cidade, construída no alto, fora do alcance do Paranazão. A notícia mereceu primeira página do Diário da Região, de Rio Preto, edição de 5 de novembro de 1986. "Com a sêca Rubinéia volta a aparecer", destacou o jornal, acrescentando: "Segundo os pescadores o lago perde um metro de água por dia". Na edição desta quinta-feira, o jornal voltou a noticiar o fenômeno, em reportagem especial.
A inundação de Rubinéia inspirou o filme "O profeta das águas”, um documentário dirigido pelo cineasta Leopoldo Nunes, e em parte até uma novela, "Fogo sobre Terra”, exibida pela Rede Globo em 1974. No filme, a trama se refere ao vaqueiro Aparecidão, Aparecido Galdino Jacintho, um líder religioso que se posicionava contra a construção da barragem e virou uma espécie de herói no rio Paraná. Acabou preso, ficando no manicômio de Franco da Rocha após ser acusado de montar um "exército divino" de camponeses.
Inundação e poesia
O portal mantido pela Prefeitura de Rubinéia faz um resgate da história da cidade e apresenta um fato curioso, narrando que "na hora de batizar suas ruas, a cidade deu exemplo de cultura e respeito, nomeando – as com nomes de poetas e escritores famosos, como Olavo Bilac, Cecília Meireles, Carlos Drummond de Andrade".
E recorda que, em 1971, justamente Drummond noticiou os acontecimentos na cidade em sua coluna no Jornal do Brasil do Rio de Janeiro intitulado "Aconteceu em Rubinéia”. Ainda em 1973, Drummond escreveu o poema "Os Submersos”, dando destaque à atitude dos rubineienses em batizar suas ruas com nome de poetas e escritores, lamentando que suas placas e logradouros estivessem debaixo d’água. Acompanhe o texto de Drummond a seguir.
Os Submersos…
"Poetas amigos que eram placa de rua em Rubineia: que tal a vida aí embaixo do lago? A princípio é meio estranho, não? Compreendo, depois a gente se habitua. Nenhuma casa em que moramos se entrega imediatamente. É preciso entendê-la, conquistá-la.
E casa de água, então? Uma rua de água, placa indicando esquina de água a transeuntes peixes. Não é todo dia que um objeto destinado a servir debaixo do sol se encontra em semelhante situação.
Já sei poeta Bandeira que você está rindo, achando graça no desconforto líquido, captando com olhar agudo a mobilidade de tons diferentes de água, para lhes atribuir correspondência verbal.
E você, poeta Cecília, o que conta dessa viagem às vidas submersas, as Holandas hidroelétricas, país de água de Ilha Solteira que romanceiro algum ainda não cantou. Está conferindo o verde de seus olhos com esse verde piscina?
Olha: aquele velhinho ali foi seu vizinho aos tempos de Cosme Velho. Uma reverência a Machado de Assis, mesmo em camadas profundas, precisamente belas, é de bom preceito. O ácido Graciliano está mais adiante e ainda não se conformou em ser nome de rua. Acha que tudo isso é palhaçada.
Não importa. Se os nomes falam entre si, as placas também dialogam e a dele tem um bom papo de quem viveu momentos fortes e, como ele, sabe comunicar-lhes a emoção em linguagem ríspida.
A represa não é um cárcere, como aquele em que o romancista ruminou por faltas não cometidas. É uma nova Rubineia, isentadas limitações municipais da superfície. Sem trânsito de veículos assustadores, sem impostos, papéis, discursos, notícias, bases mil, que toda cidade se corta.
Percebo, afinal, essa é a Pasárgada de Manuel Bandeira, oculta em oito milhões de metros cúbicos de água. Eis aí meus caros amigos: a vocês uma boa sorte e muito progresso e alegria.
"Aconteceu em Rubinéia"
Em outra publicação no Jornal do Brasil, Drummond se inspira em Rubinéia.
"Que é Rubinéia, onde fica? Rubinéia já era, e não fica propriamente, ficava na margem esquerda do rio Paraná, em São Paulo. Sete mil habitantes pequena cidade civilizadíssima, pois quando tinha de dar nome a ruas, não fazia por menos: batizava- se de Machado de Assis, Manuel Bandeira, Guimarães Rosa, Cecília Meireles, Mario de Andrade, Graciliano Ramos, outros mais.
Esquecendo-se de que estamos vivos, lembrou-se ainda de Vinicius e deste escrevente; dele, com justiça; de mim, como brincadeira. Cidade quase toda consagrada a poetas e prosadores, haverá outro no Brasil ou no mundo, que em geral prefere valores menos abstratos, e abre exceção para um literato mantendo a regra em louvor de mil homens de ação prática?
E assim, em Rubinéia, Machado vizinhava com Cecília, Rosa contava do Urucuia a Bilac, Bandeira e Mário não precisavam cartear-se: viam-se. Uma cidade diferente na paz de suas belas-letras, no bulício de suas 13 escolas.
Os outros grandes mortos, Machado à frente, pouco se lhes dá, vivem na perenidade da biografia. Mas nós dois, Vinicius e eu, não é dura pena, seremos desapropriados, demolidos, sequestrados, depositados e submergidos em sacrifício à industrialização do país e à briga de interesses entre prefeito, vereadores e CESP?
Só nos resta o consolo ministrado pelo poeta português Sidônio Muralha, radicado em S. Paulo. Cantando "o último luar de Rubinéia”, afiança que "… seus poetas, lá no fundo das águas, vão reconstruí-la, vão reescrevê-la, e ela virá à tona com limos e com magmas, e nós, homens mortais, vamos arrancá-la das águas como nasce uma estrela de outra estrela.”